Aos 29 anos, "o ECA não é uma obra acabada. Ele é a formatação de um sistema, um organismo vivo"

Juiz de Direito do TJDFT Renato Rodovalho Scussel
por RM/LF — publicado 2019-07-15T18:20:00-03:00

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A Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, tornou-se um marco na legislação brasileira ao instituir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nesta entrevista, o juiz titular da Vara da Infância e da Juventude do DF (VIJ-DF), Renato Rodovalho Scussel, faz algumas reflexões sobre os 29 anos do ECA.    

O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei abrangente, que traz direitos e deveres desse público, estabelece medidas preventivas e protetivas a seu favor. Em que contexto surgiu essa lei e o que já observamos de evolução após 29 anos?

O Estatuto da Criança e do Adolescente veio estabelecer um marco legal dentro da normativa internacional de concepção de Direitos Humanos, ao se alinhar ao texto da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovado em 1989, e ratificar o artigo 227 da Constituição Cidadã, de 1988. Dessa forma, o ECA veio resgatar a condição de sujeitos de direitos das crianças e dos adolescentes justamente quando o Brasil se autoafirmava enquanto nação garantidora de direitos democráticos e caminhava rumo à construção de uma nova sociedade.

Ainda hoje nós precisamos reafirmar o ECA como instrumento legal e ideal para nossa sociedade. Passados 29 anos, observamos que muito se evoluiu, mas a legislação permanece cristalina em seu mais puro objetivo: o de assegurar os direitos das crianças e dos adolescentes com prioridade absoluta. Nós já percebemos os avanços no sistema de justiça e no consciente coletivo. Podemos citar o melhor preparo das estruturas de atendimento do público infantojuvenil, como por exemplo das equipes técnicas das entidades de acolhimento e das unidades socioeducativas, que passaram a se debruçar sobre o Plano Individual de Atendimento, instrumento que acompanha a evolução de cada menina ou menino acolhido ou adolescente em cumprimento de medida socioeducativa (MSE) dentro da unidade. Temos ainda a criação de unidades socioeducativas diferenciadas conforme o público, com separação por faixa etária, sexo ou tipo de MSE (provisória, meio aberto, semiaberto ou estrito). Entre tantas inovações, podemos destacar também os centros integrados de atendimento no âmbito do Poder Judiciário, como o NAIJUD (Núcleo de Apoio ao Atendimento Integrado Judicial ao Adolescente em Conflito com a Lei) aqui do DF, que funciona em conjunto com outros órgãos do Executivo e Ministério Público, para atender o adolescente apreendido em flagrante pela prática de ato infracional.

Já que estamos falando de evolução do direito e da sociedade, próximo ao aniversário do ECA, a VIJ e a VEMSE (Vara de Execução de Medidas Socioeducativas) se mudaram para o novo Fórum da Infância e da Juventude, que compõe o Polo de Justiça, Cultura e Cidadania, situado na 916 da Asa Norte, terreno onde funcionava o antigo Caje. A mudança carrega um significado especial? 

Percebendo a questão da prioridade absoluta conferida à infância e juventude, o nosso Tribunal de Justiça quis construir um novo modelo de Justiça Infantojuvenil, que rompe em definitivo com a concepção ultrapassada de reformatório executada pelo antigo Caje, e edificou nesse complexo os parâmetros de cidadania, paz social e ressocialização almejados por todos no atendimento à criança e ao adolescente. Então, existe um significado especial, que reflete o posicionamento do TJDFT em reafirmar o compromisso com a criança, o adolescente e a sociedade de um modo geral. Esse Polo simboliza uma Justiça inovadora, que procura se integrar, no âmbito do ECA, com a sociedade organizada, governo, família e todos aqueles responsáveis pelo desenvolvimento da criança e do adolescente. O Polo representa um chamamento da comunidade a se integrar aos espaços físicos a serem construídos (biblioteca, teatro, arena, espaços de lazer). Trata-se de nova Justiça, com olhar diferenciado, que protege, restaura, constrói e promove a infância e a juventude. 

Existem dispositivos legais relativos às crianças e aos adolescentes que, de forma geral, são alvo de questionamentos pela sociedade. Temos como exemplo a maioridade penal, alvo de várias propostas de alteração legislativa, e, mais recentemente, o trabalho infantil. Qual a sua opinião como magistrado que atua diariamente com essas questões?

A legislação brasileira já estabelece a responsabilização para a pessoa que transgride a lei, seja ela adulta, com aplicação de uma pena, seja adolescente (entre 12 e 18 anos incompletos), com medida socioeducativa. Infelizmente, após quase 30 anos de ECA e 31 anos da promulgação da Constituição, ainda nos deparamos com o mesmo debate, o que reflete que a sociedade precisa amadurecer o sentimento de ressocializar e educar o indivíduo que, por um motivo ou outro, cometeu um erro.

Sabemos que a responsabilização possui viés punitivo mas também educativo e se propõe a retornar a pessoa ao seio familiar e à vida social. Contudo, observamos a presença de um sentimento dominante de vingança puramente. É preciso desassociar o aumento da criminalidade da idade penal, pois a prática de violência se dá em índices muito superiores entre os adultos se comparados aos números de cometimento de ato infracional grave por adolescentes. Abarrotar com jovens os presídios brasileiros, já castigados pela falida infraestrutura, não vai solucionar o problema da violência.

Precisamos aperfeiçoar a política pública de atendimento ao adolescente em conflito com a lei, de modo que, ao sair do sistema socioeducativo, ele possa ser reinserido em uma política de proteção e acompanhamento, tendo como pilares a capacitação, a qualificação profissional para seu ingresso no mercado de trabalho e, assim, se torne um cidadão ativo e produtivo para a sociedade e não seja visto como aquela pessoa que cumpriu sua medida e agora retorna ao seu meio com os mesmos problemas e dificuldades que o empurraram para a transgressão. Todos nós deveríamos focar na prevenção e reeducação e não em parâmetros etários como resolução da violência.

Quanto ao trabalho infantil, hoje temos melhor delineada a concepção de que é mais importante a criança estar dentro de uma escola aprendendo e, por outro lado, também tendo responsabilidades do que ter a obrigação de trabalhar ou até mesmo sustentar uma família. Quando falo em responsabilidades, eu me refiro aos estudos e ao dever de ajudar com tarefas simples dentro da rotina de casa, como fator educativo. A exploração é expor a criança ao trabalho com vínculo empregatício, horário e compromissos em detrimento de sua educação e lazer. Estou certo de que o parâmetro etário de 14 anos eleito na Constituição para iniciar o trabalho como menor aprendiz é adequado e razoável.

Apesar de ser legalmente um poder que deve respeitar o princípio da inércia, o Judiciário vem adotando uma postura proativa em relação a muitas questões sociais que acabam chegando até ele. Quais as ações que a Vara da Infância e da Juventude do DF desenvolve nesse sentido, buscando oferecer amparo físico ou psicológico ao público infantojuvenil? 

Para além da atuação perante o sistema judicial, o Poder Judiciário adotou postura proativa e corresponsável nas questões sociais que envolvem a criança e o adolescente. Isso porque o próprio texto constitucional estabelece ser dever da família, da sociedade e do Estado garantir o respeito aos direitos infantojuvenis. Nós, magistrados, como agentes do Estado, temos essa obrigação. Nesse sentido, o TJDFT é vanguardista e tradicionalmente possui muitos mecanismos de proteção e de incentivo à proteção integral da criança e do adolescente. Como exemplo, podemos citar o acordo de cooperação técnica celebrado entre a VEMSE, o MPDFT, a Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região e outros órgãos, com objetivo de levar a aprendizagem profissional do Sesi e do Senai a jovens internos em unidades socioeducativas do DF. 

Na VIJ-DF, temos também outras iniciativas: a Rede Solidária Anjos do Amanhã, programa que atende as necessidades de crianças e adolescentes jurisdicionados, direcionando a eles doações, acesso a estágio, capacitação, entre outros serviços, por intermédio da parceria com voluntários; o Programa de Acompanhamento a Gestantes, que evita abandono e outros riscos à criança, ao proporcionar acolhimento e orientação às mães que têm dúvidas em assumir seus filhos ou querem entregá-los à adoção; o Atendimento Humanizado, que consiste, entre outras coisas, em servir lanche às pessoas enquanto aguardam as audiências; o Espaço Criança, local lúdico do Fórum da Infância e da Juventude onde ficam as crianças enquanto seus responsáveis legais são atendidos pela Vara; o corpo de agentes de proteção da infância e da juventude, todos voluntários, que prestam acompanhamento e proteção ao público infantojuvenil em festas e eventos. 

Recentemente, uma iniciativa também caracterizou bem a proatividade do Poder Judiciário. A VIJ-DF costurou um convênio com a Secretaria de Saúde para que crianças com graves comprometimentos de saúde hospitalizadas há anos na rede pública do DF pudessem ter acesso a home care. Temos 12 crianças nessa situação e muitas puderam receber atenção especial em uma entidade de acolhimento especializada. 

Existe um movimento mundial antivacinas que tem ganhado força nos últimos anos. No Brasil, a vacinação infantil é obrigatória, está prevista no ECA, e seu descumprimento pode levar à penalização dos responsáveis. Como o senhor vê esse embate ante o direito dos pais de optarem pela melhor forma de proteger os filhos e a imposição do Estado? 

Acredito ser um movimento exagerado e descompensado. A Constituição Federal e as cartas de Direitos Humanos garantem o direito à vida e à saúde, e está comprovada a eficácia dos resultados das vacinas que integram o Calendário Nacional do Ministério da Saúde. No Brasil, várias doenças foram erradicadas graças à imunização das crianças. Então, vale lembrar que os pais são responsáveis pelo cuidado de seus filhos e, nesse sentido, não podem negligenciar ao não recorrerem às formas de prevenção comprovadas cientificamente e essenciais à saúde das crianças. 

Hoje é crescente o número de crianças e adolescentes com canais em plataformas digitais sobre os mais variados temas. Como o senhor avalia essa exposição do público infantojuvenil e quais os limites, inclusive legais, aos quais os responsáveis precisam estar atentos, uma vez que o ECA prevê a liberdade de opinião e de expressão de crianças e adolescentes? 

Não podemos fazer vista grossa à modernidade, aos avanços tecnológicos, pois são ferramentas necessárias à nossa realidade. Contudo, entre outras questões, há com frequência uma comunicação mercadológica abusiva utilizada nessas plataformas digitais. Comenta-se no Brasil e na comunidade internacional sobre a possibilidade de criação de uma agência de regulação para controlar a exposição das crianças a meios digitais, com definição de horários, assuntos, a exemplo do que é realizado em outros meios de comunicação tradicionais, de modo que a liberdade de expressão se torne equilibrada e adequada ao universo infantojuvenil. É salutar também que os pais acompanhem e participem da vida do filho, para detectar eventuais problemas e apontar as consequências de seus atos. 

O artigo 18-A do ECA fala sobre castigos físicos e degradantes. A VIJ-DF ainda lida com muitos casos relacionados a isso? Na sua opinião, qual a causa do uso dessa violência? 

Na maior parte dos casos, trata-se de castigos imoderados praticados pelos responsáveis. Pontualmente nós já nos deparamos com situações de crianças espancadas ou acorrentadas. As “surras” vêm do afã do adulto em corrigir o filho, acreditando que o uso da força física vai falar mais alto que o diálogo, o esclarecimento, a conversa franca. Esses que seriam o melhor caminho para lidar com a criança e o adolescente. A violência é fruto da ignorância, do distanciamento e da incapacidade de compreensão de que a criança e o adolescente são seres em condição de desenvolvimento.

Famílias de configurações diversas são cada vez mais comuns na sociedade. Aos 29 anos de criação, o ECA está preparado para regular essas relações sociais, inclusive no que tange à adoção?

Hoje existem várias concepções familiares, casais homoafetivos, pessoas solteiras e a figura legal da guarda compartilhada. O ECA está imbuído desse espírito inovador e acolhedor, pois a sua linguagem é o afeto. Havendo o afeto, independe qual seja o estado civil, a opção sexual, a configuração familiar. O instituto da adoção acolhe muito bem essa diversidade, e observamos que as crianças aceitam mais facilmente, pois nessa fase da vida estão voltadas para a afetividade e não despertaram para a disputa das coisas materiais, típica do universo adulto.

O número de adoções de meninos e meninas por famílias habilitadas vem aumentando ano a ano na VIJ-DF. A que fatores o senhor atribui esse crescimento?

Essas novas configurações familiares possuem menos barreiras na escolha do perfil de crianças e adolescentes aptos à adoção, como gênero, faixa etária, problemas de saúde e grupos de irmãos, justamente características presentes em nosso cadastro de adoção. Além desse fator, há outros que podem justificar o aumento por três anos consecutivos do número de adoções no DF, como o curso de preparação promovido pela VIJ-DF às pessoas que desejam se habilitar, quando, além da prestação de esclarecimentos necessários ao processo adotivo, é realizado trabalho de sensibilização dos interessados para a realidade do cadastro de adoção. Outra iniciativa que está propiciando visibilidade às crianças e adolescentes é o projeto Em Busca de um Lar, lançado em maio deste ano, que incentiva as adoções de meninos e meninas cujo perfil é preterido pela maioria das famílias cadastradas. A ideia se baseia em divulgar vídeos e imagens dessas crianças e adolescentes e buscar em todo o País pessoas que queiram com eles formar uma família. O projeto é recente, mas já estamos colhendo bons resultados. Mais uma vez, a proatividade da Justiça Infantojuvenil se revela útil à sociedade.

O ECA sofreu diversas alterações legislativas desde que foi publicado. As mudanças demonstram que a lei acompanha a evolução do pensamento e costumes da sociedade ou há propostas de lei que não condizem ou se mostram desnecessárias à nossa realidade? Na sua avaliação, quais alterações vieram para melhorar?

Levando-se em conta os quase 30 anos do Estatuto, o número de alterações se mostra razoável. A média de uma por ano reflete o acompanhamento do avanço da sociedade, uma vez que o ECA não é uma obra acabada. Ele é a formatação de um sistema, um organismo vivo. Comparativamente, a Constituição de 1988, ainda que possua mecanismo rígido de modificação, já conta com mais de 100 emendas. Portanto, acredito que as alterações do ECA são em geral saudáveis, como por exemplo a Lei do Sinase (Lei 12.594/2012), que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e regulamentou a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratica ato infracional. Recentemente, a cereja do bolo foi o Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016), que reafirma a importância de promover o investimento nos primeiros seis anos de vida da criança, período durante o qual ela desenvolve intensamente suas funções cerebrais, a plasticidade do cérebro, habilidades, afetividade.