Qualquer cidadão é apto a procurar o Poder Judiciário e fazer a defesa dos seus direitos
A Lei 9.099/95 vai completar 25 anos em 2020. Desde o início de sua vigência a sociedade passou por diversas transformações e tem sido um desafio manter os juizados especiais do país céleres, ágeis e simplificados, conforme preconiza a norma. A necessidade de modernização e atualização da atual legislação foi um dos temas abordados na entrevista com o juiz Aiston Henrique de Sousa, da 1ª Turma Recursal do TJDFT, que falou, ainda, sobre a importância do trabalho desenvolvido pelo Fórum Nacional de Juizados Especiais*, que foi presidido pelo magistrado no período 2018/2019.
Os juizados especiais foram criados pela Lei nº 9.099/95 e, portanto, existem há quase 25 anos no Brasil. Como estes juízos contribuíram para o aumento do acesso à Justiça no país?
Eu considero que o aumento do acesso à Justiça se deu em três principais áreas. A primeira foi a implementação da conciliação, que antes era uma previsão normativa que nem sempre era levada à prática. A segunda foi a facilitação do acesso mediante um procedimento simples, que permite até mesmo à parte leiga postular perante os juizados. Isso representou a consciência do cidadão de que ele pode defender os seus direitos de forma rápida. Não precisa de muito dinheiro, não precisa de um advogado. Qualquer cidadão é apto a procurar o Poder Judiciário e fazer a defesa dos seus direitos. E a terceira foi a criação de um espaço de consenso no âmbito da justiça criminal, que antigamente não era prevista. Até a vigência da Lei 9.099, quando se praticava um crime, o Estado tinha que, necessariamente, punir. E com essa lei se permitiu a transação penal e a suspensão do processo criminal como forma de evitar punição, desde que a parte assuma determinados compromissos perante o Estado.
De 1995 para cá muita coisa mudou na sociedade. O senhor considera que a atual legislação precisa ser revisada? Atualmente, existe algum movimento neste sentido?
Em 95 a gente vivia em outro mundo. As relações sociais eram presenciais, basicamente. O processo era físico. Hoje em dia você vive em uma sociedade em que as relações se dão online. É muito comum encontrarmos consumidores que estão comprando na China, na Europa, nos EUA e o processo é virtual. Não há o encontro direto entre as partes, a não ser nas audiências. Além disso, há uma demanda muito grande por prestação jurisdicional que não era prevista naquela época. Hoje nós temos cerca de 5 milhões de processos por ano em todo o Brasil nos juizados especiais. Então, toda essa realidade é diferente da realidade de 95. Além disso, há uma pressão muito grande por mudanças, principalmente no âmbito do Parlamento. Existem dezenas de projetos de lei tentando modificar a Lei 9.099. Nesse quadro, o FONAJE tomou a iniciativa de promover a discussão de uma reforma ampla que possa trazer as mudanças necessárias para o âmbito da lei. Assim, uma sugestão de revisão da legislação, proposta que engloba o pensamento dos juízes dos juizados especiais, foi entregue ao Senado Federal em novembro.
Quais são as principais alterações propostas? O que se espera com a revisão da legislação?
Dentre as alterações propostas, reforça-se a autonomia do cidadão para resolver os seus problemas. Exige-se que o cidadão, antes de propor uma ação judicial, tente as vias negociais, que hoje são muito facilitadas. É fácil o consumidor provar que procurou o call center de uma empresa por meio da internet ou de outra forma. Há também uma plataforma de negociação do Governo Federal, chamada consumidor.gov e os tribunais também estão implementando centros de conciliação pré-processual. O TJDFT trabalha nessa perspectiva. Então hoje em dia são variadas as possibilidades de alguém demonstrar que antes de entrar com uma ação judicial protocolizou um pedido junto ao fornecedor. Outra proposta é instituir o que se chama do julgamento antecipado da lide no âmbito dos juizados especiais. Isso significa o quê? Quando o processo já tem todas as provas necessárias, não há necessidade de audiência. É muito comum que toda a questão envolvendo o conflito das partes esteja documentado. Nesses casos, a audiência não tem muito sentido. Você facilita o procedimento se, ao invés de marcar audiência para daqui a não sei quanto tempo, já permitir o julgamento com os documentos apresentados. E há também a proposta de reforçar a autonomia do sistema da Lei 9.099. Nós não devemos usar o sistema complexo e rígido que é o CPC. Temos que reforçar a celeridade e a simplicidade que são características da Lei dos Juizados. O FONAJE espera da revisão da legislação um sistema mais enxuto e rápido. A expectativa é de que o cidadão passe a usar mais a conciliação e que esse processo seja mais rápido e informal.
O senhor foi presidente do Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE no período 2018/2019, num mandato que acabou de se encerrar. Qual é a importância desse órgão na consolidação da Lei nº 9.099/95?
Eu costumo dizer que o FONAJE forjou o Sistema dos Juizados Especiais, porque na época, em 95, não existia o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que é um órgão de gestão do Poder Judiciário. Assim, cada Tribunal era autônomo. Não havia uma coordenação de todo o sistema dos juizados. E a lei é muito aberta, muito ampla. Então houve a iniciativa na Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, na época, de fazer uma reunião para interpretação da Lei 9.099. Esse grupo cresceu, todo ano se reúne e passou a, digamos, uniformizar procedimentos, já que lei não tratava especificamente de como a coisa deveria ser. Esse grupo se transformou em uma troca de experiências e emissão de enunciados que são padronizações de procedimentos. Esses enunciados são sempre voltados para comandos fiéis e leais aos princípios da lei e tornaram-se aceitos nacionalmente. Normalmente, os juízes seguem, apesar de não ter caráter normativo, apenas de orientação. A doutrina também respeita muito. É improvável que alguém escreva qualquer livro sobre os juizados especiais sem fazer menção aos enunciados do FONAJE. Não tem um caráter doutrinário ou científico, mas absolutamente pragmático, de como a coisa funciona. É respeitado também pelos tribunais. Há algumas de centenas de citações do FONAJE na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a título de ilustração. Então, ele forjou o sistema, porque a lei prevê o funcionamento, mas de forma muito aberta.
Há alguma incompatibilidade entre a Lei dos Juizados Especiais e o Novo Código de Processo Civil Brasileiro (Lei nº13.105/2015) que tenha sido objeto de deliberação pelo FONAJE?
O objetivo do CPC é tratar das grandes causas, aquelas complexas, que exigem perícia, vários atos processuais separados e vários recursos. E o objetivo da Lei 9.099 é tratar das questões simples, que se resolvem numa assentada só. Então a incompatibilidade vai se dar na análise de cada artigo ou cada instituto que está nestas leis. Essa análise vai se dar pontualmente. Nós devemos, antes de aplicar um artigo ou dispositivo do CPC na Lei 9.099, analisar se ela reúne os requisitos de simplicidade e informalidade, premissas dos juizados especiais. Houve um enunciado do FONAJE de caráter principiológico nesse sentido. Ao ser aplicado no juizado especial, cada artigo do CPC tem que ser examinado para se verificar se ele cabe dentro desse sistema simples e informal.
A conciliação é uma das premissas dos juizados especiais como meio alternativo da solução de conflitos. Como o senhor vê o esforço de fomento das atividades de conciliação feito pelo TJDFT?
Quando eu tomei posse como juiz em 1996, conciliação era associada simplesmente à habilidade pessoal do juiz. Era muito precário e desestruturado. De lá pra cá, a gente sente que o Tribunal tem evoluído muito nisso, tem criado uma estrutura respeitável que desenvolve autonomia para as partes. Tem conciliação e mediação aplicadas em várias áreas, cível, criminal, de família, até na Justiça Restaurativa. É uma estrutura excelente, muito ampla, profissionalizada, inclusive com uma desembargadora da Administração coordenando todas essas atividades, que é a 2ª Vice-Presidente. O que a gente vê é um desenvolvimento muito grande e isso é louvável. É a preocupação do Tribunal para que haja a solução consensual dos problemas, porque a solução contenciosa é muito demorada, cara e nem sempre cria pacificação social. Para se ter uma ideia, o custo de um processo gira em torno de 3 a 4 mil reais. Então, se a parte pode ser estimulada a resolver o conflito sem se utilizar do processo judicial, de forma muito mais rápida e com menos custos, é muito melhor. É louvável a iniciativa e a importância que o TJDFT tem dado à conciliação, colocando-a, inclusive, como política de gestão.
*O FONAJE reúne magistrados do país, integrantes do Sistema de Juizados Especiais, com o objetivo de padronizar procedimentos, expedir enunciados, analisar e acompanhar projetos legislativos relacionados ao tema, sempre em busca do aprimoramento da prestação jurisdicional.