"Hoje a gente não consegue mais dissociar saúde de desempenho"

Coordenadora do Centro de Assistência Multidisciplinar do TJDFT, Marcella Bittencourt
por RM — publicado 2020-01-27T13:43:00-03:00

Marcella-Bitencourt_CAM.jpgInício de ano é uma época em que muitos buscam fazer um check up da saúde com a realização de exames médicos. Além de ser, também, aquele período em que tentamos cumprir as resoluções de ano novo, que geralmente envolvem a criação de hábitos que  promovam mais qualidade de vida – iniciar uma dieta, fazer exercícios físicos, começar a meditar, etc.

A política de saúde do TJDFT, hoje, segue a Resolução 207 do Conselho Nacional de Justiça, que instituiu a Política de Atenção Integral à Saúde de Magistrados e Servidores do Poder Judiciário, cujo objetivo é zelar pelas condições de saúde de seus agentes públicos.

Considerando a importância da saúde para o alcance dos macrodesafios estabelecidos na Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2015-2020, o TJDFT, por meio da sua Secretaria de Saúde – SESA, mantém um Programa de Qualidade de Vida no Trabalho (Pró-Vida), responsável por coordenar, orientar, organizar e estimular práticas e atividades de promoção de saúde e de prevenção de doenças no Tribunal.

Nesta entrevista, a responsável pelo Centro de Assistência Multidisciplinar do TJDFT, Marcella Bittencourt, fala sobre as doenças comuns em magistrados e servidores, o foco na saúde como ferramenta de gestão e como a preocupação das instituições com a saúde e o bem-estar de seu público interno pode impactar no serviço prestado à sociedade.

Atualmente as pessoas de uma maneira geral estão mais preocupadas com a própria saúde? A que se deve isso?

Eu acho que é uma tendência mundial. As pessoas hoje procuram ter hábitos mais saudáveis para buscar longevidade. Acho que a busca pela saúde se tornou, ou melhor, tem se tornado uma cultura. De uma forma geral, as pessoas buscam qualidade de vida, tanto na vida pessoal quanto no ambiente de trabalho. É cultural, mesmo.

Qualidade de vida no trabalho é um dos temas do Plano de Logística Sustentável do TJDFT. Como a saúde dos magistrados e servidores pode ser encarada como ferramenta de gestão?

A gente trata a saúde como ferramenta de gestão no sentido de que o recurso humano da instituição é o mais importante da Casa. Quando a gente fala em sustentabilidade das pessoas significa manter essas pessoas com saúde para que elas sejam produtivas ao longo dos anos que irão trabalhar. Hoje a gente não consegue mais dissociar saúde de desempenho. As pessoas só são produtivas se tiverem saúde, tanto física quanto mental. Então é ferramenta de gestão no sentido de que os gestores precisam humanizar essas relações de gestão para que tenham o olhar para o próximo. É importante que o gestor veja os seus servidores de uma forma humanizada. Eles precisam entender que aquele servidor precisa ser e estar saudável para que possa desempenhar o papel dele dentro da instituição.

Quais doenças ou condições de saúde são as maiores responsáveis pelo afastamento do trabalho de magistrados e servidores?

A SESA tem monitorado todos os afastamentos por doenças que ocorrem aqui na instituição. A maior parte dos afastamentos por doença no TJDFT tem sido de ordem psicológica. Este é um tipo de afastamento que causa muito impacto na força de trabalho. Para falarmos das mais comuns, temos a ansiedade, a depressão e os transtornos de estresse. Para qualquer um desses problemas, ninguém se cura em dois ou três dias ou até em uma semana. Se analisarmos o cenário todo, hoje a nossa força de trabalho está reduzida. Nós não temos perspectiva de substituição desses servidores. Quem fica acaba sobrecarregado, e isso, ciclicamente, causa transtornos para a gestão dessas pessoas e para questões como o atingimento de metas, a prestação jurisdicional e tudo mais. Quando nós da SESA vimos que o impacto disso seria muito prejudicial para a instituição, passamos a focar na prevenção de doenças de ordem psicossocial. O programa Pró-Vida lançou várias ações com o objetivo de prevenir esse tipo de adoecimento.

Nós não podemos intervir em metas e nem na quantidade de servidores que uma determinada unidade precisa. Então no que a gente pode trabalhar? Na resiliência das pessoas. Tornar as pessoas mais capazes de lidar com esses problemas e situações. Assim, criamos um programa chamado “Saúde, corpo e mente”, que tem por objetivo tornar as pessoas mais resilientes e fortes. Trabalhamos gestão da ansiedade, do estresse e até a espiritualidade para tornar as pessoas mais capazes para lidar com essas questões. Temos tido muito bons resultados com essa iniciativa. Temos observado que as pessoas saem um pouco mais dispostas e com um outro olhar sobre elas mesmas. O propósito, na verdade, é promover autoconhecimento, porque só nós somos capazes de saber quais são os nossos gatilhos. O que realmente me causa estresse? O que tem me tornado incapaz de cumprir as minhas atividades no trabalho? O que eu, como servidor, posso fazer? É esse tipo de coisa que a gente tem trabalhado nos grupos. A partir do final de 2020 teremos dados mais definidos para podermos comparar com os anos anteriores e saber se conseguimos reduzir o número de afastamentos dessa ordem.  

Na sua opinião, a que se deve o alto índice de doenças de fundo psicológico?

Em uma opinião muito pessoal, acho que é um cenário mundial. No censo do Judiciário, em todas as pesquisas que eu realizo e nas pesquisas feitas em todos os órgãos, a gente vê o mesmo cenário. A maioria dos afastamentos é por doença de trato psicossocial ou psicoemocional. Eu acho que a gente tem que olhar de uma forma bem holística mesmo. É a velocidade que o mundo hoje trata as coisas. A gente tem informação a todo segundo e talvez a gente tenha uma capacidade limitada de tratamento dessas informações. Talvez ainda não saibamos lidar com essa situação. Vou trazer aqui a situação das mulheres, que são sobrecarregadas, porque acumulam as tarefas de casa, de criação de filhos, de trabalho e muitas vezes de gestão. Chega um momento que a gente diz “eu não dou conta”. Ninguém é super-herói. Então essas doenças vêm acontecendo por falta de capacidade, mesmo, de lidar com todas essas situações.

Qual a maior preocupação do TJDFT com relação à saúde e bem-estar do seu público interno?

Manter a sustentabilidade funcional dos seus servidores. A gente quer que as pessoas trabalhem de uma forma que seja satisfatória para elas. É a história do prazer e do sofrimento do trabalho. Que isso seja equilibrado. O sofrimento é a questão da responsabilidade, de você ter que cumprir suas metas, produzir e atingir seus objetivos e tudo mais. O prazer é a situação de você estar feliz, satisfeito com o que está desempenhando. Você ser reconhecido, principalmente, porque grande parte dos adoecimentos vem da falta do reconhecimento. O objetivo de todo esse trabalho para o bem-estar e qualidade de vida no trabalho é manter a sustentabilidade funcional, para que os servidores trabalhem com saúde por mais tempo. “Viva bem e trabalhe melhor” é o nosso lema.

Como a atenção com o bem-estar de magistrados e servidores pode impactar o serviço que o Judiciário presta à sociedade?

Vamos começar a falar de magistrados. Se eu trato um juiz ou uma juíza, eu impacto mais de 7 mil vidas – o universo do gabinete e das pessoas que estão diretamente relacionadas ao magistrado - e impacto também minimamente duas partes por processo. Temos, em média, 3.500 processos por juiz anualmente, logo a gente tem 7 mil vidas impactadas. Então o desempenho desse magistrado está vinculado à saúde dele. Se a gente mantém esse juiz saudável, desempenhando a função no mais alto grau de excelência, temos uma prestação jurisdicional muito mais efetiva e eficiente. Da mesma forma, todos no Tribunal têm que saber o valor do trabalho que exercem. Todos os servidores e prestadores de serviço têm uma grande importância para a atividade finalística do TJDFT. A gente olha cada um como uma unidade muito importante para o Tribunal. O resultado final depende de uma instituição saudável, integrada e com servidores saudáveis.

Como mudanças no ambiente e rotinas de trabalho, como a implantação do PJe e o teletrabalho, têm influenciado a saúde de quem trabalha no Judiciário?

São mudanças que hoje são realidade, são o nosso futuro e a gente precisa se adaptar a elas. Há, obviamente, resistências em relação a estas práticas, mas é algo que não tem volta. Nós trabalhamos isso nos grupos, tentando mostrar para as pessoas que não temos como interferir nessas mudanças. É obvio que isso traz desconforto, porque tira a gente da nossa zona de conforto, faz com que repensemos a forma como trabalhamos e nos relacionamos. Essas mudanças são assustadoras, porque as pessoas não estão preparadas para elas. Então o trabalho que a gente faz, além de promover a saúde, é prevenir adoecimentos que vêm dessa não aceitação do que é novo.

O teletrabalho tem sido visto como prêmio, mas ele é uma questão muito mais benéfica para a instituição do que para o servidor. Eu acho o teletrabalho adoecedor, porque não é todo mundo que tem perfil psicológico para fazer. Principalmente por questões de disciplina e sociabilidade, já que ele promove isolamento social. A instituição, certamente, será afetada por estas questões no futuro. Ainda está muito cedo para gente avaliar isso. Vamos falar de disciplina de horário, por exemplo. Aqui no Tribunal a gente tem um horário para entrar e sair. E dentro desse horário você pratica suas atividades. Em teletrabalho, a gestão do seu tempo é livre. E aí complica, porque você está dentro de casa, onde toca telefone, o porteiro chama, tem criança brincando, etc. Há várias interferências, que a gente até pode comparar com as que ocorrem no ambiente de trabalho, mas em casa há outra prioridade na sua vida, que é a gestão da sua vida pessoal. Essa mistura é muito complicada. As pessoas não sabem separar direitinho, por isso eu falei que é necessário um determinado perfil psicológico. Aí você deixa de fazer a sua atividade naquele período e vai trabalhar quando? Na hora que devia estar descansando e compartilhando a sua presença com a família. Você vai deixando de ter prazeres saudáveis, que promovem saúde mental, e vai se sobrecarregando. Perde aquele equilíbrio entre prazer e sofrimento. A gente sofre muito mais do que tem prazer no trabalho. O teletrabalho é o futuro, não tem como voltar. É uma iniciativa excelente. Promove economia para a instituição, ou seja, economia do dinheiro público. Em relação a desempenho, acho que as pessoas que têm perfil desempenham muito mais do que no ambiente de trabalho. Temos muitos aspectos positivos a considerar. Mas em termos de saúde, é uma questão delicada.  

Quais os principais desafios enfrentados hoje pelo Tribunal em matéria de qualidade de vida, promoção da saúde e prevenção de doenças?

A principal dificuldade é a gente fazer a transformação da cultura. De forma geral, o brasileiro tem a cultura de tratar as doenças, não preveni-las ou promover saúde. Quando foi que você sentiu que uma emoção te trouxe um problema e foi ver essa emoção? Dificilmente isso acontece. Uma dor de estômago, por exemplo. Você já parou para pensar o que a causou? Por que estou sentindo isso? Você já se autoavaliou? As pessoas não têm o costume de buscar a razão, o porquê do adoecimento. Então você toma um remédio e a dor de estômago passa. Mais para frente isso volta como uma gastrite. Você vai ao médico tratar gastrite e não promover saúde. Estamos sempre tratando doença.

Mas a nossa principal dificuldade hoje é fazer essa transição: priorizar promoção de saúde e deixar o tratamento de doenças para o contexto funcional. Qual o papel da SESA dentro do serviço público? Manter o servidor produtivo. Então a principal dificuldade é transformar a cabeça das pessoas e motivá-las a buscar saúde e não tratar doenças. É uma tarefa difícil, mas as coisas vão acontecendo. A busca por mais qualidade de vida e mais longevidade vai se estender para o ambiente de trabalho. Na medida que isso vai chegando aqui, vão surgir cobranças por parte de magistrados e servidores e a gente tem que estar preparado para suprir estas necessidades.